Menu Fechar

Valorização e internacionalização da gastronomia portuguesa

À guisa de introdução ao tema, trago a terreiro o caso de um militar que foi convidado a jantar no palacete de um diplomata. À medida que passava pelas salas manifestava espanto ante a profusão, imponência e estilos dos móveis que as mobilavam. Esse espanto levava-o a perguntar: quando custou este, e aquele, e aqueloutro. O Embaixador fingia não ouvir, mas a insistência do militar redobrou, daí ter respondido: Senhor Capitão na minha família, desde o século XVII só se vende.

Manda a boa educação não referir os nomes, já manda a verdade dizer que se ao longo dos séculos tivemos a audácia de indagar o Mundo sobre os diversos mundos que o povoam, na área da defesa, valorização e internacionalização dos nossos produtos e da nossa gastronomia temos evidenciado notável desleixo, para não dizer atávica preguiça física e mental, deixando-nos ultrapassar, sistematicamente, pelos outros. Nem ao menos soubemos, nem sabemos vender.

Vou dar alguns exemplos do acima afirmado:

  • No século XI e XII, o sal da costa portuguesa merecia o interesse dos povos da Europa. Foi a extraordinária qualidade do sal de Aveiro, Lisboa e Setúbal que nos propiciou reconhecimento internacional. O de Setúbal era considerado o melhor. Perdemos a independência, perdemos o comércio do sal, nunca mais recuperámos, nos dias de agora a esquisitice culinária flor de sal está nas mãos dos franceses, o sal que deu origem à palavra salário, entra na composição de milhares de produtos, salga-nos a vida pela nossa inépcia.
  • Os missionários portugueses levaram para o Japão a técnica da tempura, os nipónicos que herdaram de nós centenas de palavras, agradeceram e transformaram a tempura em marca sua, globalizaram-na, além de ser numa extraordinária fonte de receita é símbolo japonês.
  • Os portugueses carregaram na boca palavras e nos galeões produtos europeus e que trouxeram do Novo Mundo para a África e Ásia. Deixaram que as palavras nos fugissem, dos inúmeros casos existentes retiro o exemplo da batata-doce, que foi introduzida por nós na Índia. Os ingleses importaram a batata comum, impuseram o termo potato para todas as espécies, a nossa designação desapareceu. Anoto ainda outro exemplo: canja. Em sânscrito känjí significa arroz muito diluído e azedado, o reputado Yale afirma que os ingleses receberam de nós o termo canja “talvez pela identidade do significado posto que congee, se aproxima mais da palavra indiana”.
  • Para Ásia levámos muitos produtos que influenciaram as cozinhas por onde andámos particularmente as de: Goa, Ormuz, Malaca, dada a exiguidade do tempo apenas aponto um – a malagueta – que veio do Novo Mundo. Lá ficou, as pimentas fazem parte do património imaterial da UNESCO, nós nem tivemos a arte de aproveitar a boleia da candidatura mediterrânica.
  • No jogo das trocas que Braudel tão bem analisou, recebemos bastante, demos muito: língua, produtos, culturas e técnicas. Outro exemplo: a feijoada. A feijoada portuguesa ficou-se nas covas dos nossos dentes, os brasileiros tiveram o talento de converterem a deles num prato universal. Que raio! A nosso feijoada é composta por: azeite, feijão branco, cebola, alho, entrecosto, cenoura, chouriço de carne, farinheira, morcela, canela, cravinho, hortelã, louro, tomate, toucinho ou entremeada, receita do Porto. Se verificarem as receitas de feijoada à brasileira, à goesa e à moda de Macau vão ver que as diferenças na inclusão de produtos tem a ver com as regiões, o caso do feijão preto no Brasil, no mais a paternidade da receita pertence-nos. Os outros ganham fama, réditos e influência utilizando a patente portuguesa.
  • Será que Gargântua nos amaldiçoou? Porque razão não possuímos um prato que a nível mundial nos saliente de imediato. Os espanhóis até da tapa de tapar o copo de vinho para a mosca não cair, fizeram um, a nossa saborosa sopa fria transformaram-na em gaspacho, tem a paelha dos ricos e dos pobres, e mais e mais.
  • A delambida e esquisita condessa apenas ficou satisfeita quando o perspicaz barman lhe deu a comer finas fatias de vitela crua. Nasceu o carpaccio, que irradiou para os cinco continentes. E, e, e chega de exemplos.
  • Não chega, neste caso de sinal contrário. A investigadora americana Susan dos Santos, na obra The Antropollogists Cookbook, refere o bacalhau à Gomes de Sá, talvez pudesse ascender ao estrelado, até porque não pesa sobre ele nenhum interdito penso seu, ainda não subiu ao estrelato, como não podia deixar de ser alude à extraordinária herança da pastelaria e doçaria religiosa, acrescentando: “Na actualidade cozinha-se uma reduzida variedade de aqueles doces, apesar disso a pastelaria portuguesa ainda conta com um dos reportórios mais notáveis do mundo”. Pois conta!

Após este desfile de constatações negativas, podia acrescentar outras, impõe-se a pergunta como defender as artes culinárias e a gastronomia portuguesa.

Resposta breve: fazer, fazendo. No entanto obrigo-me a acrescentar:

  • Dentro do preconizado por Paul Bocuse:”Necessita-se de pouco para fazer as coisas bem, mas menos ainda para as fazer mal”, importa estabelecer as premissas para:
  1. Estudar as matrizes culturais dos produtos de forma a sabermos quais as viagens que eles fizeram antes de ancorarem em Portugal e qual o seu papel noutras regiões e latitudes, permitindo-nos perceber pontos de referência comuns no plano alimentar e gastronómico. Porque uma coisa é a comida, outra a gastronomia. Como sabemos há produtos que serviram e servem de senha de referência ideológica, na época da Reconquista, o toucinho foi um deles. O tema é vasto e o tempo é curto.
  1. Estudar as raízes das receitas para as configurarmos nas diversas cozinhas existentes: alta cozinha; cozinha urbana de raiz citadina; cozinha urbana de raiz popular; cozinha rural, oral, escrita, histórica, de vanguarda, de criação, de inovação, de miscigenação, particular, pública, religiosa, mendicante, balizada por peregrinos, viajantes, passantes, negociantes, turistas e grupos minoritários. Porque estamos em Aveiro pensemos nos navegantes, nos pescadores de perto, do mar alto, de bacalhau durante semanas a fio, nos almocreves cuja figura maior vinha comprar e arranjar encrencas a esta terra cujo mar produz sal, refiro-me ao Malhadinhas, notável criação de Aquilino Ribeiro.
  1. Construírem-se cartas gastronómicas. Brevemente vão sair dois trabalhos da minha autoria onde os pontos de referência acima referidos foram levados em linha de conta. Estas obras serão oferecidas aos profissionais da restauração desses dois concelhos e, num dos casos a Autarquia irá conceder benefícios aos restaurantes e casas de comeres que assegurem um mínimo de pratos nos seus menus durante todo o ano. Também irá apoiar actos de formação e promoção dos receituários além-fronteiras.
  1. Estudarmos as matrizes educacionais no referente à formação do gosto dos públicos, por exemplo em associação com a moda (nesta área existem múltiplas possibilidades de estabelecermos casamentos felizes), trago ao de cima dois exemplos: a cintura de vespa conseguia-se à custa de comeres delicados, vinagre, as vamps mostravam-se pouco mas sugeriam muito, fazendo luzir cetins e tafetás bebendo brancas misturas de largo e longo alcance. Esteve na moda o traje imagem do homem no restaurante. No Museu Berlanga encontramos outros trajes, comidas e bebidas. Podemos idealizar um projecto para construirmos uma cultura da moda e da comida valorizando as nossas criações culinárias de antanho até agora.
  1. Estudarmos as matrizes educacionais do acto de comer colocando-nos em condições de estabelecermos parcerias internacionais com agências e centros de difusão gastronómicos geradores de eventos catalisadores da atenção de agentes publicitários, do espectáculo, da gastronomia e chefes em alta. A ascensão de chefes do calibre de Ferran Adrià sustenta-se no enorme talento dele, também num marketing de alto nível profissional. Quem tiver dúvidas faça favor de ler a obra de Colman Andrewes acerca do agora em meditação Adrià.
  1. Fazer-se o levantamento dos locais de culto culinário e gastronómico portugueses e associá-los a factos, artistas, escritores, músicos e tutti-quanti. Atravessando o Atlântico deixo de lado o autor da Cozinha Confidencial e socorro-me de Duke Ellington. O genial intérprete granjeou fama, glória e dinheiro a dois restaurantes da pequena cidade de Tauton (vivem lá milhares de portugueses) porque afiançou eles servirem o melhor frango estufado dos Estados Unidos. O vibrante gosto a picante não me convenceu muito, mas em matéria de gostos a ortodoxia é cousa espúria.
  1. Fazer-se o levantamento das receitas de matricialidade portuguesa adoptadas noutras regiões do Mundo, e estabelecerem-se relações de trabalho cultural, científico e técnico com finalidade de as preservar resistindo à normalização culinária e de sabores imposta pela indústria alimentar.
  1. Fazer-se a prospecção dos restaurantes de comida portuguesa e/ou que servem comeres de matriz portuguesa no Mundo. Em Xangai as tapas espanholas estão na moda graças ao restaurante El Willy.
  1. A Região de Turismo do Centro porque sei do seu empenho nestas causas, o exemplo é este; propor-se a realizar o grande Congresso Gastronómico dos PALOP, Macau e Goa, e dos núcleos mais fortes da emigração.
  1. Na mesma linha e por essa altura efectuar-se o 1.º Encontro dos Chefes Portugueses a trabalharem no estrangeiro, estrangeiros a operarem em Portugal.
  1. Produtos de qualidade, receitas susceptíveis de alteração e inovação capazes de originarem novas criações são bom capital para valorizarmos e internacionalizarmos a gastronomia portuguesa. Sem nunca perderem a identidade, convenhamos. Sem visões populares, românticas ou visionárias.

Não devemos esquecer o essencial: a comida é a principal atracção.

Julgo que já os aborreci suficientemente. Muito obrigado

Armando Fernandes

Intervenção de Armando Fernandes no

Fórum – A Gastronomia Portuguesa: Defesa e internacionalização

09 de Maio de 2012 – Aveiro