Bairrada, Grito Porcino
Da Culinária à Gastronomia
Noémia Maria Barreto Metello Leitão
e José Machado Lopes
O paleolítico constitui uma fase marcada pela ausência de cerimónias de culto. O homem encontrava-se totalmente dominado pelo medo da fome e da morte, preocupado em defender-se contra os assaltos de outras hordas e contra as necessidade materiais, por meio de exorcismos mágicos. Mas não estabelecia relação alguma entre a boa e a má fortuna ou qualquer poder situado para além dos acontecimentos.
Domesticados os animais e as plantas, só então começou a admitir que o seu destino seria dirigido por forças sobrenaturais dotadas de razão e domínio.
Com a crença e os actos de culto, surge a necessidade de ídolos, amuletos, símbolos, ofertas votivas, sacrifícios.
Daí a “zoolatria” (culto da ganaderia), animais tidos por sagrados, por vezes com a “categoria” de totem (antepassado do grupo, raiz primeira, espírito protector e benfazejo). Animais também ligados à necrolatria, aos ritos de fertilidade, aos ritos fálicos e de reprodução.
Venerar e a subsequente adoração dos animais começou, pois, por um acto de reconhecimento face ao prestadio e ao útil.
O porco, de fácil criação doméstica (pocilga) ou pastoreio (“vezeira”) e carnes apetitosas, tem honras de ara e de deus tutelar, entidade mítica vinda da providência do “Criador”.
De tudo se alimenta – lavagens e rebotalhos, tudo devolvendo em “centuplicado”: fêveras, presunto, banha (pingue, sopa de unto), enchidos, sangue, o entremeado (coirato), a pele (com que se manufacturavam, por exemplo, os taleigos), torresmos, chispes, orelheira, os ossos.
Logo, um “bicho” completo, acamado na salgadeira.
Os gregos usaram-no com farteza, desde o leitão ao enchido.
Animal afamado nas mesas romanas, sendo bem conhecidos dois pratos saborosíssimos – “sumen” e “vulva”.
Dizer-se que a zoolatria se extinguiu talvez seja eufemismo, pois ainda se regista a interferência de animais em acção exorcizante – esconjuros. Para além disso, todo o agregado rural que se preze depende da matança do porco (com uma certa pitada de paganismo – nascem, criam-se e engordam para folia pantagruélica).
E o omnipresente leitão, sagrada fartura, vianda épica deste Portugal?...
O javali ou javardo, esse fossava pelas belas florestas do nosso país. Deveria abundar pela zona da Mealhada, pois apareceram bastantes presas nas escavações da Estação Arqueológica Lusitano-Romana da Vimieira. Tronco mais curto e cabeça maior do que a do porco, talvez o ancestral remoto.
Então, como terá chegado até nós o porco?
A grande invasão celta data do séc.VI antes de Cristo. Porque algumas tribos celtas sacralizaram o porco e adoptaram mesmo o seu nome e insígnia, admite-se terem sido os seus introdutores como animal doméstico.
Esta grande invasão celta vem referenciada no “Périplo” do séc. VI do poema “Ora Marítima” de Avieno. Ao descrever as populações pré-célticas da costa ociental acima do Tejo, enumera os “Sefes” (como totem a serpente) os “Pernix Lusis” (Lusitanos), os “Draganos” (confinados à região de Trás-os-Montes).
Portanto, povos anteriores aos celtas já na fase neolítica , usando a cerâmica e em que a agricultura bem como a pequena ganaderia eram um todo económico.
Se o neolítico se difundiu a partir de um núcleo mediterrânico oriental como defendem alguns autores, o porco como animal doméstico existia de há muito na Península quando da onda celta.
O porco pertenceria a uma cultura primitiva de agricultores e a sua maior irradiação deu-se entre os anos 4000 e 3000 a.C., passando do Norte de África ao Sudoeste da Europa.
Assim, o habitador das margens do Cértima, 3500 anos a.C. e antes dos Celtas (sec. VI a.C.), privava com o porco, esse grande provedor doméstico para um ciclo anual. Com certeza também se aventurou na faina de doirar leitões, não ainda com a pimenta da Índia mas recheada de ervas aromáticas.
Viva a família porcina!
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Da simples degustação – sentido inferior do homem – até à culinária e desta gastronomia, que amargos de boca!...
As papilas, como que sentinelas à entrada do tubo digestivo, tinham (e têm) um papel meramente defensivo niciceptivo. Apenas retiniam (e retinem) o alarme no caso de ingestão de ácidos ou sais tóxicos. Isto é comum aos vertebrados e invertebrados.
Chegou o momento da percepção, passando o homem gradualmente a distinguir na Natureza o ácido, o salgado, o amargo e o doce. O picante, mais uma agressão que uma prova gustativa.
Foi a passagem do instinto à cultura, a transição da necessidade ao prazer, a ponte para a arte e a estética gastronómica.
Todo o animal aceita um leque de alimentos reconhecíveis não só pelos órgãos do gosto, mas pela associação de imagens sensoriais (sentidos da vista, tacto e olfacto – cheiro como motor dos impulsos condicionantes).
O sistema alimentar do homem combina isto tudo, além de somar a cadeia de preferências juvenis, personalidade étnica (cozinhas regionais), códigos tradicionais, convenções e premunições. Aqui sobrepõe-se o “organismo social” à espécie zoológica.
Gera-se todo um repositório/referência da cozinha, em que se inscrevem os gostos. Nasce um registo de recusas e apetências (associações gustativas), mas sucedendo-se com uma certa ordem e harmonia: aperitivos ligeiramente acidificados, pratos intermédios a puxar ao sal, saladas ácidas, queijos temperados, sobremesas doces. Na tradição clássica, o salgado, o ácido e o picante fazem parelha.
Outro registo (qual jogo/gozo em contraponto) se fixa: o das temperaturas (gelado, frio, morno, quente e escaldante) e o das consistências (mole, duro, viscoso, estaladiço, fundente, arenoso, líquido, untuoso).
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A culinária portuguesa segue a nacionalidade e assim se mantém até ao séc. XV, completamente alheia aos soberbos requintes da cozinha romana mas muito “condimentada” com o engenho árabe.
Os descobrimentos, a partir do séc. XV, revolucionam a confecção e a qualidade – da Ásia, da América e da África, miscegenámos iguarias, num compósito e apetitoso “estilo manuelino”.
“…Os portugueses foram grandes revolucionários da estética do paladar, porque universsalizaram gostos novos e confundiram a geografia botânica pelas suas transplantações ousadas…”
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Hoje o consumo do banal e o entusiasmo pelo exótico, fruto do fenómeno sociológico de uma burguesia delirante e consumista, perigam o acervo depurado, refinado e retido ao longo dos séculos da nossa existência como homens da Ibéria e como Nação.
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Arte no comer, arte no saborear: o que se leva desta vida!...
“COGNOMES” DE SUA MAJESTADE EL-REI D.PORCO”
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Bacorinho
Bácoro
Barrão
Barrasco
Berrão(1)
berrós (ou barros) (Galiza)
Birre (Algarve)
Cerdo
Cevado
Cevão
Chacim
Chico(2)
Cochinillo (Castela e Leão)
Cochino
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Cocho
Cotchino (Rio de Onor)
Farroupinho
Gironda(3)
Grunho
Larego
Leitão
Marracho
Marrancho
Marrano
Marrão
Minante
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Porcalho
Porco
Reco
Roncante
Suíno
Tó (Alentejo)
Treçó (4)
Varrão(5)
Varrasco
Verraco
Verrasco
Verrasquete
Vista Baixa
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(1) Étimo verrane, do latim verres. Prof. Leite de Vasconcelos, nota 3 da pág. 22 do vol. III das “Religiões da Lusitânia”, Lisboa, 1913.
(2) Donde “chiqueiro”.
(3) Porca velha.
(4) Último leitão da mesma ninhada.
(5) Forma erudita correspondente ao popular “berrão”.
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ALGUMAS CURIOSIDADES SOBRE O PORCO
* Nome científico: “Sus scropha domesticus”
* O porco começa a aparecer na heráldica portuguesa a partir de Sancho II (séc. XIII).
PROVÉRBIOS POPULARES BAIRRADINOS
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Um sabor tem cada caça
mas o porco cento alcança.
O leitão e os ovos
dos velhos fazem novos.
Quem se mistura com os porcos
come lavagem.
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Porcos com frio
e homens com vinho
fazem grande arruído.
Mata o teu porco
se queres ver o teu corpo.
Porco de um ano
cabrito de um mês
mulher dos 18 aos 23.
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* Na iconografia, Santo Antão aparece sempre com um porco aos pés.
* Versos de Rebelo de Bettencourt (“Em Louvor do Vinho de Cheiro”):
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“Fui à matança dum porco…
Foi uma festa de estalo!
Se os torresmos eram bons,
O vinhão era um regalo!
Que direi do sarrabulho
Temperado com pimenta?
Não tenho medo ao Diabo,
O petisco é que me tenta!”
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* Na Mealhada, de Santa Luzia a Sernadelo, junto à Estrada Nacional Nº1, há 41 restaurantes e casa de Pasto.
*Nos restaurantes da Mealhada assam-se, por mês, 6000 leitões!
(Recolha efectuada pelos autores do trabalho “Bairrada Grito Porcino”)
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Publicado em
Aqua Nativa Nº 1
Dezembro de 1991
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